terça-feira, 10 de julho de 2012

Te Contei, não ? - A ascensão da classe GG

Preta Gil (Foto: Fotos: Stefano Martini/ÉPOCA, Tomás Rangel/ÉPOCA e Sendi Morais/ÉPOCA. Produção: Felipe Monteiro e Jairo Billafranca para Studio Bee Produções)


O Brasil é um país exibido. Nas praias e nas ruas, a exposição generosa de pernas, tórax, bíceps e bumbuns é previsível como o sol quase diário num país tropical. Nos últimos anos, os contornos ganharam volume. Somos hoje uma nação de gente cheinha – ou redonda, ou gorda, o adjetivo depende do observador. Quase metade da população (48%) pesa mais do que deveria. Os gordinhos já são maioria (52%) na população masculina. Em várias capitais, o excesso de peso é a regra entre os moradores de ambos os sexos. É o caso de Porto Alegre (55%), Fortaleza (53%), Cuiabá (51%) e Manaus (51%). Apenas o Sudeste não tem nenhuma capital que tenha alcançado esse nível, mas o Rio de Janeiro está quase lá (49%).  
Esse novo cenário do Brasil – agora, além de país mestiço, também um país roliço – inspira uma mudança cultural. Antes desprezados, os gordinhos passaram a ser valorizados. Alguns indícios.

 •A convicção de que existe beleza gorda tornou possível a criação de um concurso disputado por mulheres que inspirariam qualquer pintor renascentista. A atual Miss Brasil Plus Size pesa 98 quilos – e, como é possível observar na foto de abertura desta reportagem, é linda.

•A C&A convidou a cantora Preta Gil para ser garota-propaganda. Em julho, a rede de lojas lança uma linha inspirada nela. Os tamanhos vão de 46 a 56. De gordinha excêntrica, Preta se tornou representante de um tipo genuinamente brasileiro. Outras grifes vêm lançando uma variedade sem precedentes de produtos para o público GG (leia os quadros ao longo desta reportagem).

•No mundo da cultura pop, os gordinhos também triunfam. É o caso da rainha do tecnobrega, a paraense Gaby Amarantos (1,66 metro e 76 quilos). E também do ator Tiago Abravanel, que brilhou nos palcos como o cantor Tim Maia. Ele será um dos destaques da próxima novela das 9 da TV Globo, Salve Jorge, na pele de Demir, um sedutor irresistível.

No mundo do design, hoje é possível encontrar cadeiras de escritório nas versões P, M e G, assim como mouses de computador ideais para mãos gordinhas. Encontrar anéis e alianças em numerações maiores deixou de ser um problema. A maioria das joalherias pensa nisso e oferece soluções.

As brasileiras aprenderam a valorizar o padrão de beleza da mulher real. Essa tendência foi captada pelo Instituto Data Popular, especializado em pesquisa e consultoria em estratégias de negócio. A pesquisa, cujos dados ÉPOCA publica em primeira mão, entrevistou 15 mil mulheres acima de 16 anos, de todas as classes sociais. As voluntárias receberam fotos de três mulheres famosas (sem identificação do rosto), vestidas apenas de lingerie. Para 72%, o corpo mais atraente era o mais curvilíneo. A maioria (59%) gostaria de ter aquela silhueta. As participantes não sabiam, mas escolheram ser Geisy Arruda, a moça que foi humilhada numa universidade paulista por usar um vestido curto. Na pesquisa, Geisy superou a atriz Juliana Paes (32% queriam ser como ela) e a modelo Gisele Bündchen (apenas 8% gostariam de ser como ela). “O padrão de beleza deixou de ser o das passarelas. Ele é considerado pelas mulheres, e até pelos homens, pouco atraente, nada sensual e até feio”, diz Renato Meirelles, sócio diretor do Instituto Data Popular.

Uma pesquisa qualitativa realizada pela rede de lojas C&A chegou a uma conclusão semelhante: a autoestima das cheinhas está em alta. “As mulheres querem se sentir na moda, com roupas que valorizem as formas em vez de escondê-las”, diz o diretor de marketing da C&A, Elio França. No levantamento, as mulheres pediam as roupas da moda, só que em tamanhos maiores. Uma frase recorrente: “Se a moda é animal print (estampas que imitam pele de animal), quero encontrar a mesma peça no meu tamanho”. Segundo França, foi por isso que a empresa escolheu Preta Gil como garota-propaganda.

Logo ela, que no passado foi vítima de preconceito. Em 2003, Preta decidiu aparecer nua na capa de seu primeiro CD. Preta mede 1,60 metro e pesava 70 quilos. Menos que os 84 de hoje. O público foi implacável. “O desconforto não era provocado pela nudez, mas pelo fato de eu estar fora do padrão de magreza”, diz Preta. Em 2008, ela foi flagrada pelos paparazzi no momento em que era derrubada pelas ondas na Praia de Ipanema. Foi chamada de “baleia” e de “porca” por um programa de TV. Entrou na Justiça e recebeu uma indenização de R$ 100 mil. Quatro anos depois, Preta usa manequim 46 e virou símbolo da beleza da mulher real. Ela conta que sempre precisou se impor, inclusive na família. “Meu pai e a mulher dele, Flora, são obcecados por magreza. Vivem de regime, se controlando”, afirma. “Sempre me cobraram demais, mas hoje corto logo. Brinco que não posso emagrecer por questões contratuais.”

A gordinha Renata Issas, de 44 anos, lançou o concurso Miss Brasil Plus Size sem grandes pretensões. No início, era só um ícone dentro do blog Beleza Grande. Rapidamente, começou a receber inscrições de todo o Brasil. Diante do sucesso, ela patenteou o concurso e foi atrás de patrocinadores. Mais de 500 meninas se candidataram. A eleita de 2012 foi a goiana Cléo Fernandes, de 25 anos. Ela tem 1,78 metro de altura e 98 quilos. Cléo diz que não passa cinco dias sem receber alguma proposta de trabalho para estrelar campanhas de produtos criados para pessoas acima do peso. Ela começou a engordar aos 9 anos, quando desenvolveu uma compulsão alimentar. Aos 12, provocava vômitos depois das refeições. Precisou de tratamento psiquiátrico. As coisas começaram a mudar quando a mãe a incentivou a procurar trabalhos como modelo plus size. “Um mundo novo se abriu para mim. Percebi que havia outras meninas como eu e que eram bonitas com o corpo que tinham”, afirma.

No universo da cultura pop, algo semelhante está acontecendo. Antes de se tornar um sucesso, Gaby Amarantos (leia a entrevista ) ouviu o seguinte conselho do agente de uma banda: “Você é talentosa, mas precisa emagrecer. Faça um regime e volte aqui depois”. Gaby pesava 98 quilos e obedeceu. Passou semanas tomando um cálice de vinagre em jejum. Não perdeu peso e ganhou uma gastrite. Ficou dias sem beber água em plena Belém, no Pará. Desidratada e desiludida, achou que a solução seria a cirurgia plástica. Fez uma lipoaspiração sem ter noção do que era a dor do pós-operatório. Pouco tempo depois, recuperara a pouca gordura perdida. Hoje consegue se achar bela com 76 quilos. Segue uma dieta apenas para manter esse peso. As mulheres param Gaby na rua para dizer que, graças a ela, agora também se acham bonitas. “Havia tempo não se via uma mulher com um corpo normal fazer sucesso”, diz. “As pessoas veem em mim que, para ser alguém, não é preciso ser loira, alta e magra.”

Outro aconselhado a emagrecer no início da carreira foi o ator Leandro Hassum, de 38 anos, do programa humorístico Os caras de pau, da TV Globo. Nunca seguiu a dica. Ele mede 1,80 metro, pesa 142 quilos e enxerga vantagens no excesso de peso. Diz que, por ser gordo, precisou desenvolver características positivas como simpatia e romantismo. Entre as desvantagens, cita a dificuldade para encontrar roupas. “Hoje posso mandar fazer um terno Ricardo Almeida sob medida, mas antigamente era impossível encontrar roupas bacanas por um preço acessível”, diz.

O fenômeno que começa a ganhar corpo no Brasil é semelhante ao ocorrido nos Estados Unidos e no Reino Unido. De 2009 para cá, demonstrações de fat pride (orgulho de ser gordo) surgiram em várias frentes. O público reagiu positivamente quando a revista americana Glamour chegou às bancas com um ensaio sensual estrelado por mulheres de peso normal ou um pouco acima do ideal. Os gordinhos conquistaram espaço em séries de TV americanas. Na Inglaterra não foi diferente. Beth Dito, vocalista da banda The Gossip, considerada um dos ícones do fat pride, apareceu nua na capa de duas revistas britânicas: NME e Love. Criou uma marca de roupas para mulheres que vestem tamanhos grandes ou extragrandes. Pode-se dizer que foi uma precursora de Preta Gil.

Apesar das demonstrações de valorização da beleza real, o padrão ditado pela moda e pela mídia ainda é, em sua arrasadora maioria, macérrimo. “Há sinais de mudança, mas a regra ainda é o preconceito”, diz a psicóloga Patricia Vieira Spada, autora do livro Obesidade e sofrimento psíquico: realidade, conscientização e prevenção (Editora Unifesp). Ela afirma nunca ter atendido uma gordinha que não preferisse ser magra. “O preconceito ocorre em duas vias: é da sociedade e também da pessoa consigo mesma. As meninas até se vestem com roupas sensuais e vão para a balada, mas sofrem”, diz. Patricia observa que o desprezo social pelas gordinhas é alimentado pelas mulheres. Muitos homens, na opinião dela, preferem as fofinhas. Ela duvida de que iniciativas de valorização dos corpos cheinhos sejam capazes de mudar a visão da sociedade sobre o excesso de peso. Mas podem transformar histórias pessoais. “As gordinhas estão fazendo do limão uma limonada; estão içando uma bandeira para ter um lugar no mundo”, diz Patricia. “Conseguir transformar coisas ruins em coisas boas é inteligente.”

O que há de perigoso nas demonstrações de orgulho obeso é o risco representado pela apologia da obesidade. É fundamental que as gordinhas de hoje pensem no longo prazo. O ganho de peso é uma questão metabólica inexorável depois da menopausa. Todas as mulheres, gordas e magras, passam por isso. Quem tem tendência a engordar engordará ainda mais. Quem não tem tendência engordará se não reduzir as calorias ingeridas e aumentar a atividade física. Para as gordinhas jovens, a opção mais saudável é controlar o peso com lucidez e perseverança. Sem loucuras dietéticas, sem obsessão por padrões impossíveis e com amor-próprio.

A obesidade é uma doença das mais graves, sempre relacionada às principais causas de morte no Brasil. Provoca diabetes, doenças cardiovasculares, como infarto e derrame, vários tipos de câncer e outros males. Se todas as pessoas precisam se preocupar com a saúde, os gordinhos devem se preocupar ainda mais. Preta Gil diz que está reduzindo a ingestão de gordura para equilibrar o colesterol. Gaby Amarantos faz atividade física e procura seguir uma alimentação equilibrada durante a semana. Cléo Fernandes faz exames periodicamente e não descuida dos exercícios físicos. Leandro Hassum está seguindo uma dieta para tentar chegar aos 115 quilos.

Nas últimas três décadas, o Brasil viveu uma complicada transição nutricional. Saiu da desnutrição para o sobrepeso (um pouco acima do normal) e para a obesidade (bastante acima do normal). É um processo recente, do ponto de vista demográfico. Faz apenas 50 anos que o país começou a mergulhar na era da abundância e do sedentarismo. A vida ficou mais fácil quando o trabalho braçal foi substituído por máquinas e os carros se popularizaram. E mais confortável quando os controles remotos eliminaram até os mínimos esforços.

A ascensão econômica da população (em especial das classes C e D) aumentou o consumo de alimentos de baixa qualidade nutritiva, mas ricos em gordura do pior tipo e em carboidratos. As geladeiras estão cheias de sobremesas lácteas ultracalóricas que os desavisados chamam de iogurte. As prateleiras, abarrotadas de biscoitos recheados de todas as cores e cheiros. Os fast-foods dos shoppings, lotados de gente que, finalmente, conquistou o direito de consumir o que quiser – e faz isso sem freios.

“A educação alimentar desde a infância é a solução. Depois que alguém já engordou, é difícil reverter a situação. Às vezes, é impossível”, diz a endocrinologista Luciana Bahia, pesquisadora do Departamento de Medicina Interna da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). O grupo de Luciana estuda o impacto econômico e social da obesidade. O último estudo da equipe, apresentado na semana passada num congresso na Espanha, revela que o Sistema Único de Saúde (SUS) gasta anualmente R$ 375 milhões com atendimentos ambulatoriais e internações de pessoas que sofrem de doenças provocadas pela obesidade.

O excesso de peso também compromete os ganhos de longevidade comemorados nas últimas décadas. A atual geração de crianças americanas pode se tornar a primeira na história do país a viver menos que os pais. A obesidade já subtrai um ano da expectativa média de vida nos Estados Unidos, segundo Stuart Jay Olshansky, da Universidade de Illinois, em Chicago. Ele não é o único a fazer esse alerta. “Se a obesidade infantil continuar a crescer, a redução poderá se tornar muito mais acentuada nas gerações futuras”, afirma o professor Frank B. Hu, da Universidade Harvard, no livro Obesity epidemiology.

Esse é um combate que exige esforços coletivos e individuais. Ainda que encontrem vestidos sexy e se sintam bonitas, as gordinhas não devem achar que agora está tudo bem. Não está. A obesidade é uma doença, mas buscar a magreza a qualquer preço é igualmente doentio. O segredo é o equilíbrio – ser vaidosa, sem descuidar da saúde. A maioria das brasileiras nunca será Gisele Bündchen, mas pode ser tão orgulhosa de si quanto Gaby Amarantos ou Preta Gil.


Revista Época

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