segunda-feira, 16 de julho de 2012

Te Contei, não ? - Cada um na sua


Levante a mão quem nunca teve uma camiseta preferida. Já que você não se mexeu, é melhor sentar-se confortavelmente para ler esta reportagem. Afinal, é sobre aquele delicioso pedaço de pano que você veste sempre que quer se sentir bem – e sobre as histórias que ele conta – que estamos falando.
Quase dois bilhões de camisetas são vendidas no mundo todos os anos. Mas o que torna essa peça de roupa um item tão imprescindível? “A camiseta é uma tela em branco”, diz a consultora de moda Constanza Pascolato. E parece ser justamente a possibilidade de pintar essa tela como quisermos que nos fascina. Pela camiseta, descobrimos se fulano foi a um show de rock, se estudou numa universidade da Califórnia, se toma aquele refrigerante tão pop, se é contra a caça às baleias ou a favor da prevenção do câncer. Elas servem de passaporte para entrar (camiseta virou convite para eventos e festas) e também para sair (experimente entrar na arquibancada do Atlético Mineiro com uma camiseta do Cruzeiro).
Usada durante séculos com a mesma discrição com que hoje usamos calcinhas e cuecas, a camiseta foi aos poucos sendo revelada. Ao longo do último século, vestiu sonhos, paixões, revoltas e protestos. E, enquanto cada um de nós estampava no peito sua história pessoal, nem percebíamos que estávamos pintando também um pouca da história do mundo em que vivemos.
Antes do começo - Antes do século 20
A história da camiseta costuma ser contada a partir da década de 1950, quando a juventude americana colocou para fora as peças que até então só eram usadas como roupa de baixo. Mas há um prólogo bem comprido na biografia da peça de roupa mais democrática de todos os tempos.
Em 1516, Michelângelo finalizou O Escravo Moribundo. A estátua mostrava um homem completamente nu, com exceção de uma peça que ele levantava acima do peito e que em nada lembrava as roupas empoladas usadas na época. “Na história da arte, esse pode não ser o único nem o primeiro exemplo de uma camiseta, mas é certamente o mais triunfante”, escreveu o crítico de arte Olney Krüser no livro A História da Camiseta.
A ousadia de Michelângelo não ditou moda. Ainda iriam se passar centenas de anos antes que a camiseta pudesse ser vista com naturalidade sobre o corpo de homens e mulheres.
Os antepassados mais antigos da camiseta foram as túnicas usadas nos impérios grego e romano, por volta de 700 a.C. Elas deram origem aos camisolões da Idade Média, que eram usados só como roupa de baixo. Feitos com um tecido duro, que não moldava o corpo, eles não eram retirados nem na hora do banho, já que o contato com a própria nudez era considerado pecaminoso. Quando os homens passaram a usar calças, por volta do século 16, o camisolão começou a ser encurtado. E, à medida que os tecidos se tornavam mais maleáveis, ele ia se estabelecendo como o companheiro inseparável – porém invisível – da roupa do dia-a-dia.
Saindo do armário - Até os anos 50
Até o começo do século 20, a maior pretensão de uma camiseta era proteger os homens de incômodos como a transpiração. Se elas se exibiam, era no corpo de trabalhadores: verdureiros, jornaleiros e operários em geral.
Foram os imigrantes europeus que trouxeram a moda para o Brasil, por volta de 1895. Muitos inclusive usavam a versão sem mangas, mais apropriada para o clima tropical com o qual não estavam acostumados. Na época, a peça era conhecida por um nome mais comprido: “camisa-de-meia”, uma referência ao algodão, tecido nada nobre e restrito às peças íntimas.
A moda acabou fazendo sucesso nas praias cariocas. Comparada às roupas de banho da época, largas camisas sobre shorts compridos, a camiseta, mais justa ao corpo, era uma experiência sem precedentes de liberdade.
Essa ligação com a idéia de liberdade e conforto esteve sempre presente na história da camiseta. Em 1934, durante suas férias na Riviera Francesa, Coco Chanel cometeu o absurdo de aparecer vestindo uma calça masculina e uma camiseta de marinheiro, feita de um tecido tão “inadequado, miserável, frágil e bom apenas para roupas de baixo” (como escreveu Edmond Charles-Roux no livro Le Temps Chanel – “Os Tempos de Chanel”, sem tradução em português), que parecia impensável que estivesse sendo exibida por uma das estilistas mais bem-sucedidas de todos os tempos. A mensagem era clara: o conforto estava na moda. E nenhuma outra peça poderia ser uma aliada melhor que a roupa macia de algodão.
Onde tudo começou - Anos 50
Em 1955, o diretor americano Nicholas Ray decidiu filmar a história de um garoto rebelde, de passado conturbado. Juventude Transviada – ou Rebel Without a Cause (“Rebelde sem Causa”, o título original) – tornou-se um marco no cinema. Para o papel principal, Ray escolheu um jovem ator hollywoodiano que acabou se tornando o ícone de uma geração. No papel de Jim Stark, James Dean era o retrato perfeito da juventude americana no começo da década de 1950: jovens másculos e perturbados que voltavam para a casa da Segunda Guerra Mundial e tinham extrema dificuldade em se reintegrar à conservadora sociedade americana.
Aqueles jovens não estavam dispostos a vestir o uniforme da conformidade, o terno. Assim, passaram a usar as mesmas camisetas que estavam por baixo da roupa de guerra (por cima delas, muitas vezes, apareciam as famosas jaquetas de couro). “Nos anos 50, a camiseta equivalia a uma evidente recusa da maneira tradicional de se vestir. Sua simplicidade equivalia a um ‘não’ incisivo”, escreveu o filósofo Luiz Carlos Maciel no texto “Vestindo sonhos e idéias”, também do livro A História da Camiseta. E o “não” da juventude americana logo se tornou um coro ao redor do mundo.
Paz, amor e camiseta - Anos 60
Ainconformidade e a negação ao tradicionalismo, que nasceram nos anos 50, chegaram à década de 1960 transformadas em revolta contra os padrões. O anseio por liberdade transformou a moda e a tornou unissex. Cabelos compridos não eram mais exclusividade feminina, assim como camisetas deixaram de ser roupas de homem.
Em 1963, a edição francesa da revista Elle, um dos símbolos da moda no mundo, publicou na capa uma foto de moças vestidas com bonés e camisetas. Ou melhor, “suéteres de verão”. A moda estava pegando, mas parece que a alta burguesia francesa ainda não estava preparada para usar a mesma roupa que operários e jovens delinqüentes.
Foi só a partir da metade da década, com a turbulência dos protestos pacifistas contra a Guerra do Vietnã, dos assassinatos de Kennedy e Martin Luther King, dos movimentos pela liberação sexual e dos sucessos estrondosos do rock’n roll, que a camiseta assumiu de vez seu papel de meio de comunicação. Havia tanta coisa a ser dita, tantos partidos a tomar, que era melhor ir avisando logo de que lado se estava. E nenhum suporte era mais eficiente do que a mensagem estampada com todas as letras no peito de cada um. “A contestação expressa pela camiseta ganha um conteúdo afirmativo nos anos 60, quando ela deixa de ser simplesmente roupa para se tornar meio de comunicação de massa”, escreveu Maciel.
A idéia de simplicidade e recusa dos padrões que a peça sugeria agradava aos hippies, a massa jovem da época. Estava preparado o terreno para as mensagens mais radicais, sem papas na língua, que invadiram as camisetas na década seguinte.
Rasgados e chiques - Anos 70
Em 1971, Yves Saint Laurent era um dos estilistas mais badalados do mundo. Suas roupas vestiam divas do cinema e suas modelagens tinham a fama de transformar qualquer ser do sexo feminino em uma mulher poderosa e sexy. O que ele dizia sobre moda virava regra e não poderia ser diferente quando ele declarou que “tudo o que uma garota de 20 anos precisa é de uma t-shirt e um par de jeans”. Nada dos “eufemismos de verão” da década anterior. A camiseta havia, enfim, conquistado a todos nós.
Àquela altura, as grandes marcas de refrigerantes, automóveis e outros produtos haviam percebido o enorme alcance daquela peça de roupa e passaram a estampá-la com seus nomes e logos. Ao mesmo tempo, camisetas se estabeleciam como um meio de comunicação e, por isso mesmo, se materializavam como uma aliada importantíssima da contracultura. Aquilo que era ignorado pela grande mídia podia facilmente atingir multidões por meio de imagens estampadas em algodão. Foi assim com a foto do líder revolucionário “Che” Guevara. Foi assim com os protestos do movimento punk. Nada era ousado demais para as camisetas e bastavam dois quarteirões para que as linhas curvilíneas de “Enjoy Coca-Cola” (Saboreie Coca-Cola) se transformassem em “Enjoy Cocaine” (Saboreie Cocaína).
As grifes e o Brasil - Anos 80
Em 1984, a estilista inglesa Katharine Hamnett tornou-se a “eco-chata” mais famosa do mundo. Convidada para uma cerimônia na residência oficial da primeira-ministra britânica, Margareth Tatcher, Hamnett compareceu ao evento vestindo uma jaqueta fechada. Ao se aproximar de Tatcher, e ao lado de todos os fotógrafos, abriu o casaco mostrando uma camiseta que levava os dizeres “58% don’t want Pershing” (58% não querem Pershing). Pershing é um tipo de míssil que estava sendo produzido nos Estados Unidos, com apoio da Inglaterra, mesmo sobre protesto de 58% dos ingleses.
Protestos e posturas contestadoras não faziam tanto sucesso na Europa e nos Estados Unidos dos anos 80. Os hippies haviam saído de cena e agora eram os yuppies – jovens ricos profundamente comprometidos com o consumismo – que ditavam as regras. E a regra, em geral, era muito clara: se você tem dinheiro, mostre-me. Foi assim que as camisetas deixaram de ser a peça mais simples do guarda-roupa e passaram a ostentar a marca de seus fabricantes em letras garrafais. Para dar um look ainda mais suntuoso à roupa, valia até colocar ombreiras por baixo das camisetas.
No Brasil, no entanto, a história era outra. Havíamos amargado duas décadas de ditadura e foi nos anos 80 que finalmente estampamos nossos ideais de um país democrático. As mesmas curvas da Coca-Cola, por aqui, se transformaram em “Tome Eleições Diretas”. “A palavra de ordem das ‘diretas-já’ sofreu, num primeiro momento, um boicote por parte dos veículos de comunicação. A utilização ampla de camisetas supriu a falta de jornais e tevê e conduziu a palavra de ordem ao dia-a-dia”, escreveu Luiz Carlos Maciel. Mais uma vez a camiseta se provou imprescindível.
Novas formas - Anos 90
No começo de 1992, ao sair para o cooper matinal, o então presidente Fernando Collor de Mello escolhia cuidadosamente a camiseta que iria usar. Elas sempre estampavam frases como “Não fale em crise, trabalhe!” e bastavam alguns flashes para que as mensagens saltassem às páginas dos jornais. A camiseta havia se convertido definitivamente em propagadora de mensagens.
Com isso, ela perdeu parte do seu caráter contestador. Afinal, já não servia apenas àqueles que desejavam um outro mundo. Os protestos até continuaram a ser estampados, mas eram a moda restrita de movimentos localizados. “Nos bairros da periferia de São Paulo, por exemplo, o hip-hop ganhou força nos anos 90, mas a maior parte dos valores da classe média era hedonista, sem preocupação em passar uma mensagem política”, diz a professora de antropologia da PUC-SP Márcia Regina da Costa.
A falta de aspirações ou idealismo podia ser vista no movimento grunge. Jovens passaram a se vestir de forma exageradamente largada usando, por exemplo, camisetas por cima de camisetas. Atenta às novas demandas, a indústria logo respondeu aos grunges, com peças imitando a sobreposição.
Mais para o final da década, os jovens começam a viver num paraíso eletrônico, com celulares, internet e eventos superproduzidos. As raves ganham força e, para fazer jus ao novo ambiente noturno, a moda clubber investe em tecidos tecnológicos (brilham no escuro, refletem a luz néon).
Assim, na história da camiseta, a grande revolução dos anos 90 podia ser vista em sua forma e tecidos. Camisetas feitas de sacolas de supermercados, de tecidos sintéticos; camisetas com golas em V, sem mangas, com uma única manga; camisetas largas, baby-looks. O formato em T estava sendo transformado de todas as maneiras possíveis.
Todos de camiseta - Hoje
De tanto estilo que se criou, de tanto tecido que se inventou, os anos 2000 chegaram sem muitas regras no mundo da moda. A idéia é cada um ser o que quer e, por isso mesmo, se vestir como quiser. “As pessoas viraram estilistas de si próprias”, diz a consultora Costanza Pascolato.
Com isso, entra em cena a customização. O termo surgiu ainda nos anos 60, quando a Harley-Davidson, fabricante americana de motocicletas, decidiu que seus clientes podiam escolher a cor, os desenhos e todos os acessórios de sua moto. A idéia era que o cliente (customer, em inglês) saísse da loja com uma moto que fosse a sua cara e, por isso mesmo, única.
O termo chegou com força ao mundo da moda. O impacto da internet tornou as marcas globalizadas e espalhou tendências pelo mundo. Para escapar da massificação, muita gente passou a fazer suas próprias camisetas, usando a tecnologia disponível. A indústria, mais uma vez, percebeu o filão. Fabricantes pequenos comercializam camisetas quase exclusivas pela internet e grandes marcas se organizaram para colocar à venda camisetas com cara de únicas. “Vivemos uma época de capitalismo flexível, que, ao invés de produzir para grandes massas, produz para nichos definidos de consumo”, diz o professor de ciências sociais e política da Fundação Getúlio Vargas, Francisco Fonseca. “Esses nichos existem pois os valores estão mais individualistas.”
A falta de um ideal coletivo é mesmo a marca do mundo em que vivemos. Diferentes sonhos, projetos e modos de pensar formam a sociedade heterogênea de hoje e aparecem refletidos no peito de cada um de nós. Como diz o lema, estamos cada um na sua. Mas todos de camiseta.

Para saber mais

Na livraria:
The T-Shirt Book - Charlotte Brunel, Assouline, EUA, 2002
A biblioteca:
A História da Camiseta - Vários autores, Hering, 1988
 
Superinteressante

Nenhum comentário:

Postar um comentário