Não é sempre que isso acontece em teatro. Mas tem acontecido, todas as noites, de quinta-feira a domingo,
no recém-inaugurado Teatro Geo, em São Paulo. No centro do palco, está uma tela em branco. De costas para a plateia, o pintor Mark Rothko e seu jovem assistente, Ken, com movimentos que seguem a trilha sonora, preparam a base do que no futuro será uma obra do artista famoso, pintando a tela de vermelho. Rothko ocupa o espaço de cima, pincelando da esquerda para a direita; Ken, a de baixo, indo da direita para a esquerda. Quanto o trabalho é concluído, quando a tela está inteiramente vermelha, o público não resiste e aplaude. Em cena aberta. Como se fosse um número de circo, uma dupla de malabaristas que tivesse superado um movimento especialmente difícil. Mas era só uma cena bonita. Uma das muitas cenas bonitas de “Vermelho”, a peça de John Logan que faturou seis prêmios Tony quando estreou na Broadway há dois anos.
Tenho minhas suspeitas sobre o que faz a plateia aplaudir "Vermelho" em cena aberta. Numa comédia, é fácil o público demonstrar sua aprovação ao que está vendo. Suas gargalhadas confirmam que o espetáculo está no caminho certo. Num musical, o público é convidado a aplaudir praticamente cena por cena o que está sendo mostrado. A intensidade das palmas ou o nível das gargalhadas confirmam ou não o acerto da montagem teatral. “Vermelho” não é uma comédia nem um musical. É uma peça sobre o velho e o novo, sobre o moderno e o ultrapassado, sobre a relação de mestre e aprendiz, de pai e filho. É sobre arte. Ela existe apenas na força do texto, na força do diálogo entre Mark Rothko e seu assistente ficcional. O público não tem chance de, com sua reação, demonstrar que está aprovando. O aplauso em cena aberta é isso. É como se a plateia estivesse dizendo aos atores: “Vão em frente! Estamos gostando!”. E há muito o que
gostar em “Vemelho”.
“Vermelho” não é uma biografia de Mark Rothko, o pintor russo, naturalizado americano que, nascido com o século XX (1903) e tendo se suicidado em 1970, tornou-se um dos inventores do expressionismo abstrato. A peça é centrada num momento específico do artista. Em 1958, ele foi convidado para criar quatro painéis que seriam expostos, em Nova York, no então novo restaurante The Four Seasons. Pelo trabalho, ele ganharia US$ 35 mil, equivalentes hoje a US$ 2 milhões. Uma ninharia perto do que estão valendo atualmente seus trabalhos. Com o preço de US$ 86,9 milhões alcançado por uma de suas telas — “Orange, red, yellow”, de 1961 — em leilão este ano na Christie’s, Rothko transformou-se no artista contemporâneo mais caro do mundo. Mas era mesmo uma fortuna em 1958. E o artista ficou empolgado. Ele alugou um ginásio desativado da Associação Cristã de Moços e pôs-se a trabalhar. É neste ginásio que se desenrola a trama. O autor imaginou um jovem artista contratado por Rothko para ser seu assistente e é no diálogo entre os dois que se estabelece o conflito teatral. Não há referências à mulher do pintor ou à sua filha. Quase
nada sobre sua vida particular. Mas há muito sobre suas obsessões artísticas, como o livro “A origem da tragédia”, de Nietzche, ou a tela “Estúdio vermelho”, de Matisse.
O que importa em ”Vermelho“ é o conflito de gerações. Rothko orgulhava-se de sua arte ter “pisoteado” Picasso e o cubismo. Mas não reage bem quando Ken lhe mostra que, da mesma forma, Andy Warhol e a arte pop vêm “pisoteando” suas formas retangulares e sua luta por encontrar a harmonia — ou o desacer-
to? — entre as cores primárias.
Mark Rothko é interpretado por Antonio Fagundes. Não é um papel fácil. O pintor era conhecido por sua antipatia e autocentrismo. Meio dono da verdade. Fagundes entrega-se ao personagem sem tentar suavizá-lo para agradar ao público. É um trabalho de grande ator. Chega a mudar a postura de seu corpo para parecer mais barrigudo e menos simpático. É como se sobrasse naquele ser humano apenas a tragédia de ser artista. E sua transformação, do começo da peça, quando mostra-se até arrogante ao explicar sua arte, ao homem perplexo, quase humilde diante dos novos tempos, no fim do espetáculo, é merecedora de prêmios.
A versão brasileira, que Jorge Takla dirige com brilho além de criar um cenário deslumbrante, ganha novo significado ao escalar o filho do protagonista para interpretar o jovem assistente. Bruno Fagundes não tem que enfrentar apenas o gigantismo de Antonio Fagundes em cena. Tem que enfrentar o próprio pai. E ele se sai bem na tarefa.
Rothko trabalhou quase dois anos no projeto, concluiu três painéis e... desistiu da empreitada. Devolveu o dinheiro que tinha recebido como adiantamento. A primeira série de telas foi vendida individualmente. A segunda foi abandonada e, provavelmente, nunca tenha sido vendida. A terceira está na Tate Gallery, em Londres. Rothko nunca explicou direito o motivo de ter desistido do trabalho. A peça tenta explicar. E, quando o faz, cria ótimo teatro.
no recém-inaugurado Teatro Geo, em São Paulo. No centro do palco, está uma tela em branco. De costas para a plateia, o pintor Mark Rothko e seu jovem assistente, Ken, com movimentos que seguem a trilha sonora, preparam a base do que no futuro será uma obra do artista famoso, pintando a tela de vermelho. Rothko ocupa o espaço de cima, pincelando da esquerda para a direita; Ken, a de baixo, indo da direita para a esquerda. Quanto o trabalho é concluído, quando a tela está inteiramente vermelha, o público não resiste e aplaude. Em cena aberta. Como se fosse um número de circo, uma dupla de malabaristas que tivesse superado um movimento especialmente difícil. Mas era só uma cena bonita. Uma das muitas cenas bonitas de “Vermelho”, a peça de John Logan que faturou seis prêmios Tony quando estreou na Broadway há dois anos.
Tenho minhas suspeitas sobre o que faz a plateia aplaudir "Vermelho" em cena aberta. Numa comédia, é fácil o público demonstrar sua aprovação ao que está vendo. Suas gargalhadas confirmam que o espetáculo está no caminho certo. Num musical, o público é convidado a aplaudir praticamente cena por cena o que está sendo mostrado. A intensidade das palmas ou o nível das gargalhadas confirmam ou não o acerto da montagem teatral. “Vermelho” não é uma comédia nem um musical. É uma peça sobre o velho e o novo, sobre o moderno e o ultrapassado, sobre a relação de mestre e aprendiz, de pai e filho. É sobre arte. Ela existe apenas na força do texto, na força do diálogo entre Mark Rothko e seu assistente ficcional. O público não tem chance de, com sua reação, demonstrar que está aprovando. O aplauso em cena aberta é isso. É como se a plateia estivesse dizendo aos atores: “Vão em frente! Estamos gostando!”. E há muito o que
gostar em “Vemelho”.
“Vermelho” não é uma biografia de Mark Rothko, o pintor russo, naturalizado americano que, nascido com o século XX (1903) e tendo se suicidado em 1970, tornou-se um dos inventores do expressionismo abstrato. A peça é centrada num momento específico do artista. Em 1958, ele foi convidado para criar quatro painéis que seriam expostos, em Nova York, no então novo restaurante The Four Seasons. Pelo trabalho, ele ganharia US$ 35 mil, equivalentes hoje a US$ 2 milhões. Uma ninharia perto do que estão valendo atualmente seus trabalhos. Com o preço de US$ 86,9 milhões alcançado por uma de suas telas — “Orange, red, yellow”, de 1961 — em leilão este ano na Christie’s, Rothko transformou-se no artista contemporâneo mais caro do mundo. Mas era mesmo uma fortuna em 1958. E o artista ficou empolgado. Ele alugou um ginásio desativado da Associação Cristã de Moços e pôs-se a trabalhar. É neste ginásio que se desenrola a trama. O autor imaginou um jovem artista contratado por Rothko para ser seu assistente e é no diálogo entre os dois que se estabelece o conflito teatral. Não há referências à mulher do pintor ou à sua filha. Quase
nada sobre sua vida particular. Mas há muito sobre suas obsessões artísticas, como o livro “A origem da tragédia”, de Nietzche, ou a tela “Estúdio vermelho”, de Matisse.
O que importa em ”Vermelho“ é o conflito de gerações. Rothko orgulhava-se de sua arte ter “pisoteado” Picasso e o cubismo. Mas não reage bem quando Ken lhe mostra que, da mesma forma, Andy Warhol e a arte pop vêm “pisoteando” suas formas retangulares e sua luta por encontrar a harmonia — ou o desacer-
to? — entre as cores primárias.
Mark Rothko é interpretado por Antonio Fagundes. Não é um papel fácil. O pintor era conhecido por sua antipatia e autocentrismo. Meio dono da verdade. Fagundes entrega-se ao personagem sem tentar suavizá-lo para agradar ao público. É um trabalho de grande ator. Chega a mudar a postura de seu corpo para parecer mais barrigudo e menos simpático. É como se sobrasse naquele ser humano apenas a tragédia de ser artista. E sua transformação, do começo da peça, quando mostra-se até arrogante ao explicar sua arte, ao homem perplexo, quase humilde diante dos novos tempos, no fim do espetáculo, é merecedora de prêmios.
A versão brasileira, que Jorge Takla dirige com brilho além de criar um cenário deslumbrante, ganha novo significado ao escalar o filho do protagonista para interpretar o jovem assistente. Bruno Fagundes não tem que enfrentar apenas o gigantismo de Antonio Fagundes em cena. Tem que enfrentar o próprio pai. E ele se sai bem na tarefa.
Rothko trabalhou quase dois anos no projeto, concluiu três painéis e... desistiu da empreitada. Devolveu o dinheiro que tinha recebido como adiantamento. A primeira série de telas foi vendida individualmente. A segunda foi abandonada e, provavelmente, nunca tenha sido vendida. A terceira está na Tate Gallery, em Londres. Rothko nunca explicou direito o motivo de ter desistido do trabalho. A peça tenta explicar. E, quando o faz, cria ótimo teatro.
Jornal O Globo