No domingo passado chamei de “agudo” o acento que indica a crase. E isso em meio a uma animada reafirmação de minha exigência e minha vaidade quando se trata do bom manejo da língua portuguesa. Ou foi falha de memória senil ou autossabotagem neurótica. Logo o meu amadíssimo acento grave, de que sinto tanta falta nos casos em que ele, até aquela mudança ortográfica dos anos 1970, apontava a sílaba subtônica dos advérbios de modo construídos a partir de adjetivos proparoxítonos, como, por exemplo, “gràficamente”. Passei anos achando feio ler (e escrever) “graficamente” (ou “solidamente”, em vez de “sòlidamente”; ou “rapidamente”, em vez de “ràpidamente” — a lista é enorme), em que a palavra pode parece ter nascido de um adjetivo paroxítono, “grafica”, “solida”, “rapida”... Deus me livre. Também nos casos do sufixo “zinho”, que forma diminutivos, colado a oxítonos acentuados, como “café”, “mocó”, “vatapá”. Bom mesmo era o “cafèzinho
Não li esse artigo com o erro grave de desrespeitar o acento grave dizendo-o agudo: escrevi-o correndo e fui para o aeroporto tomar um avião para vir a Nova York, onde ainda estou — escrevendo às pressas este lamento, já que corro para tomar o avião de volta ao Rio. Maria Emília, da Companhia das Letras (que revisava meus textos para “Verdade tropical”), foi quem me contou, por e-mail. Pensei logo no Xexéo (aliás, gosto da atenção que ele dá a erros de português). Aqui, tive de me haver foi com o inglês falado. Não tanto por mim, que me viro, mas pelos que o usam desde sempre ou que passaram a ser fluentes nele: sempre me lembro de Millôr, ainda no Pif-Paf de “O Cruzeiro”, descrevendo sua vinda aos States e dizendo que, aqui, sentia permanentemente falta das legendas. Mas pude dizer, numa conversa com curadores e diretores do MoMA, em inglês, que o samba deve também ser visto como um acontecimento na História da língua portuguesa. Enquanto sentia saudades da abundância de acentos na escrita de Guimarães Rosa (contaram-me que ele dizia que o português precisava de mais, não de menos acentos), me consolava dizendo a americanos, venezuelanos, peruanos, mexicanos, brasileiros e portugueses ligados ao MoMA que não teríamos samba se não falássemos português.
Rosa escrevia “dôido” — pelo menos no “Grande sertão: veredas”. Não sei por quê. Digo que pelo menos no romance, pois há variações notáveis de escolhas ortográficas de conto para conto. Há um em que a palavra “dança” é sempre grafada com “s”, como em francês: “dansa”. Tampouco sei a razão. Lembro-me de Antônio Risério adotando essa grafia num livro, não por causa de Rosa, mas por conta de uma conversa com uma nossa amiga, que observava que o esse (e aqui me volta a saudade dos tempos pré-anos 1970, em que o acento diferencial nos assegurava de estar dizendo, por escrito, “esse” e não “êsse”: desde aquela década fatídica não temos como saber se se trata de um ou de outro, a não ser por uma rápida reflexão sobre o contexto), o esse, eu dizia, diferentemente do cê-cedilha, que parece ter uma roda presa, descreve em sua forma sinuosa o movimento de quem baila.
Nova York continua linda. E peço que notem que, depois da argumentação do meu querido consogro Sergio Flaksman, adotei a forma consagrada na imprensa de escrever o nome da cidade americana, desistindo de teimar, como só fazíamos eu e o “Jornal do Brasil”, em escrever Nova Iorque. Se bem que, faz pouco, escrevi, aqui mesmo na coluna, sobre algum novaiorquino — e me perguntei (intimamente — e o digo com pena de não poder dizer “ìntimamente” —: não pus isso no artigo) se Sergio escreveria “nova-yorkino”. Union Square estava cheia de pessoas incríveis, uma mistura fascinante de tribos e raças, muitas meninas com shortinhos como a gente pensa que só vê no Brasil. Aliás, esses shortinhos mínimos que tantas vezes amigos argentinos — e alguns brasileiros — atribuem a alguma nossa vulgaridade específica foram invenção inglesa, da época em que eu vivia lá: na esteira da já consagradíssima m i n i s s a i a , criou-se o que era chamado de “hotpants”, os shorts curtíssimos das meninas de hoje dos bailes funk, das escolas finas da Zona Sul, daspraças de Barbacena, da Union Square.
Em suma, para exagerar no estilo fragmentário, adorei que Francisco Bosco ressaltasse a beleza e a dignidade estilística dos artigos de Otto Lara Resende. Ele tem razão. Também em imaginar que Otto, em pessoa, deveria ser encantador. Ele era. Conversamos somente uma vez, mas longamente, numa festa em que também estavam Tom Jobim e Dorival Caymmi (e João Gilberto ficou dentro do carro, na porta, sem entrar, mas mandando chamar de vez em quando um ou outro amigo para trocar umas palavras que o inteirassem um pouco do que se passava lá dentro). Ou estou confundindo duas festas na casa de Zanini? Otto e eu tivemos um desencontro pelas páginas dos diários. Ele me atribuiu alguma declaração sobre Collor que não procedia. Escrevilhe uma carta pessoal. Ele respondeu divinamente. E conversamos sobre isso e, mais, sobre assuntos leves e vários, ele sempre se saindo com tiradas despretensiosas e irresistivelmente engraçadas. Não eram piadas que fizessem gargalhar. Eram observações levemente cômicas mas agudamente penetrantes que causavam felicidade pela oportunidade, pelo poder revelador e pela simples exposição de uma inteligência desembaraçada. Não o imagino cometendo o lapso de trocar o nome de um acento gráfico.
Não li esse artigo com o erro grave de desrespeitar o acento grave dizendo-o agudo: escrevi-o correndo e fui para o aeroporto tomar um avião para vir a Nova York, onde ainda estou — escrevendo às pressas este lamento, já que corro para tomar o avião de volta ao Rio. Maria Emília, da Companhia das Letras (que revisava meus textos para “Verdade tropical”), foi quem me contou, por e-mail. Pensei logo no Xexéo (aliás, gosto da atenção que ele dá a erros de português). Aqui, tive de me haver foi com o inglês falado. Não tanto por mim, que me viro, mas pelos que o usam desde sempre ou que passaram a ser fluentes nele: sempre me lembro de Millôr, ainda no Pif-Paf de “O Cruzeiro”, descrevendo sua vinda aos States e dizendo que, aqui, sentia permanentemente falta das legendas. Mas pude dizer, numa conversa com curadores e diretores do MoMA, em inglês, que o samba deve também ser visto como um acontecimento na História da língua portuguesa. Enquanto sentia saudades da abundância de acentos na escrita de Guimarães Rosa (contaram-me que ele dizia que o português precisava de mais, não de menos acentos), me consolava dizendo a americanos, venezuelanos, peruanos, mexicanos, brasileiros e portugueses ligados ao MoMA que não teríamos samba se não falássemos português.
Rosa escrevia “dôido” — pelo menos no “Grande sertão: veredas”. Não sei por quê. Digo que pelo menos no romance, pois há variações notáveis de escolhas ortográficas de conto para conto. Há um em que a palavra “dança” é sempre grafada com “s”, como em francês: “dansa”. Tampouco sei a razão. Lembro-me de Antônio Risério adotando essa grafia num livro, não por causa de Rosa, mas por conta de uma conversa com uma nossa amiga, que observava que o esse (e aqui me volta a saudade dos tempos pré-anos 1970, em que o acento diferencial nos assegurava de estar dizendo, por escrito, “esse” e não “êsse”: desde aquela década fatídica não temos como saber se se trata de um ou de outro, a não ser por uma rápida reflexão sobre o contexto), o esse, eu dizia, diferentemente do cê-cedilha, que parece ter uma roda presa, descreve em sua forma sinuosa o movimento de quem baila.
Nova York continua linda. E peço que notem que, depois da argumentação do meu querido consogro Sergio Flaksman, adotei a forma consagrada na imprensa de escrever o nome da cidade americana, desistindo de teimar, como só fazíamos eu e o “Jornal do Brasil”, em escrever Nova Iorque. Se bem que, faz pouco, escrevi, aqui mesmo na coluna, sobre algum novaiorquino — e me perguntei (intimamente — e o digo com pena de não poder dizer “ìntimamente” —: não pus isso no artigo) se Sergio escreveria “nova-yorkino”. Union Square estava cheia de pessoas incríveis, uma mistura fascinante de tribos e raças, muitas meninas com shortinhos como a gente pensa que só vê no Brasil. Aliás, esses shortinhos mínimos que tantas vezes amigos argentinos — e alguns brasileiros — atribuem a alguma nossa vulgaridade específica foram invenção inglesa, da época em que eu vivia lá: na esteira da já consagradíssima m i n i s s a i a , criou-se o que era chamado de “hotpants”, os shorts curtíssimos das meninas de hoje dos bailes funk, das escolas finas da Zona Sul, daspraças de Barbacena, da Union Square.
Em suma, para exagerar no estilo fragmentário, adorei que Francisco Bosco ressaltasse a beleza e a dignidade estilística dos artigos de Otto Lara Resende. Ele tem razão. Também em imaginar que Otto, em pessoa, deveria ser encantador. Ele era. Conversamos somente uma vez, mas longamente, numa festa em que também estavam Tom Jobim e Dorival Caymmi (e João Gilberto ficou dentro do carro, na porta, sem entrar, mas mandando chamar de vez em quando um ou outro amigo para trocar umas palavras que o inteirassem um pouco do que se passava lá dentro). Ou estou confundindo duas festas na casa de Zanini? Otto e eu tivemos um desencontro pelas páginas dos diários. Ele me atribuiu alguma declaração sobre Collor que não procedia. Escrevilhe uma carta pessoal. Ele respondeu divinamente. E conversamos sobre isso e, mais, sobre assuntos leves e vários, ele sempre se saindo com tiradas despretensiosas e irresistivelmente engraçadas. Não eram piadas que fizessem gargalhar. Eram observações levemente cômicas mas agudamente penetrantes que causavam felicidade pela oportunidade, pelo poder revelador e pela simples exposição de uma inteligência desembaraçada. Não o imagino cometendo o lapso de trocar o nome de um acento gráfico.
Jornal O Globo
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