Os livros sobre William Shakespeare (1564-1616) são mais abundantes que a obra do poeta e dramaturgo inglês, embora não lhe cheguem a seus pés. Todo ano imprimem-se novos volumes que tentam atender à curiosidade que cerca um dos maiores escritores da história. De vez em quando, da pilha de obras dispensáveis emerge alguma coisa que realmente merece ser lida. Como Shakespeare se tornou Shakespeare (Companhia das Letras, 456 páginas, R$ 59), lançada no Brasil em 2011, é uma delas. O autor é Stephen Greenblatt, de 68 anos, professor da Universidade Harvard. Com base em documentos e na análise das peças, ele busca a motivação de Shakespeare na construção de seus personagens. Outra obra é o ensaio Quem escreveu Shakespeare (Nossa Cultura, 358 páginas, R$ 59), que chega nesta semana às livrarias brasileiras. Nele, James Shapiro, de 56 anos, professor da Universidade Colúmbia, de Nova York, retoma a antiga polêmica em torno da autoria das 38 peças que formam o cânone de Shakespeare. Elas foram atribuídas a outros autores por escritores como Henry James e Mark Twain. Shapiro retoma a polêmica para encerrá-la. Seu livro foi considerado o “tratamento definitivo” da questão. Segundo o crítico literário Stephen Marche, foi como “trazer um (caça militar) F-22 para uma briga de facas em um beco”. Tanto Greenblatt quanto Shapiro estarão na Festa Literária Internacional de Paraty,em 6 de julho, para discutir Shakespeare
O livro de Greenblatt se destaca entre as biografias de Shakespeare por tentar reconstituir sua vida íntima por meio de passagens de sua obra (leia o quadro acima). “Tive o cuidado de nunca construir um relato de sua vida baseado só em seus escritos. Tinha de haver alguma evidência documental”, diz ele. Um exemplo é o esforço de Greenblatt para descobrir como o jovem William se interessou por teatro. Ele encontra relações entre as peças e folhetos que descrevem uma encenação em honra à rainha Elizabeth ocorrida em 1575, a 20 quilômetros de distância da cidade de Stratford, onde Shakespeare nasceu e ainda morava, aos 11 anos. Uma das atrações mencionadas é um golfinho mecânico de mais de 7 metros de comprimento que passeou pelas águas ao lado do castelo com um grupo de sopro tocando cantigas. A cena é citada nas peças Noite de reis (“Como Árion no dorso do golfinho”) e Sonho de uma noite de verão (“A ouvir uma sereia no dorso de um golfinho”). Ao abordar a formação de Shakespeare, Greenblatt tenta fazer uma análise de suas características psicológicas. Sua obsessão com a nobreza, por exemplo. O pai de William, John Shakespeare, iniciou o processo para comprar um título de nobreza, mas ele foi arquivado, provavelmente por falta de pagamento. Shakespeare tinha fama e dinheiro em 1596, quando reabriu o processo para dar ao pai, a si mesmo e a seus filhos o título de Cavalheiro da Rainha.
Shapiro fez outro tipo de livro. Ele é o primeiro acadêmico respeitado a entrar na polêmica sobre a autoria das peças de Shakespeare. Há quem acredite que o Bardo, como a posteridade apelidou Shakespeare, não escreveu suas obras. Mas sim contemporâneos como o pensador Francis Bacon (1561-1626) ou o poeta Edward de Vere (1550-1604), conde de Oxford. A polêmica, apesar de não ter fundamento, perdura 200 anos depois da morte de Shakespeare. O argumento essencial, recheado de preconceito, é que apenas alguém com origem nobre – e não um ator sem educação formal – estaria habilitado para escrever tantas maravilhas. No meio acadêmico, a discussão é ultrapassada. Com o advento da internet, teorias vulgares ganharam corpo e novos adeptos. Um abaixo-assinado com mais de 2 mil nomes – entre eles, um ex-juiz da Suprema Corte americana, John Paul Stevens – pretende, até 2016, ano dos 400 anos da morte de Shakespeare, transformar sua identidade em campo de estudo acadêmico.“Meu interesse na controvérsia é guiado não pelas teorias, que são tolas, mas sim pelas consequências culturais de vivermos num mundo onde provas documentais não valem como valiam”, diz Shapiro. “Isso deveria preocupar todo mundo.” Ele diz que as dúvidas sobre o trabalho de Shakespeare surgiram entre as décadas de 1840 e 1850, na mesma época em que estudiosos na Alemanha estavam debruçados sobre obras clássicas e religiosas – como a Odisseia, de Homero, e o Novo Testamento – tentando determinar sua origem e autenticidade. “Shakespeare, como ícone cultural, foi escolhido como alvo”, afirma. Desde então, surgiram novas evidências que comprovam sua identidade. Em 2009, um retrato presumido, datado de 1610, foi encontrado entre as posses de uma família irlandesa. Em 6 de junho, arqueólogos descobriram em Londres vestígios de seu primeiro teatro, o Curtain. Pesquisas como as de Greenblatt e Shapiro estimulam o entusiasmo por dramas, comédias e sonetos de Shakespeare – estes, sim, acima de qualquer controvérsia.
Revista Época
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