sexta-feira, 6 de julho de 2012

Entrevista - Ma Jun

ÁGUAS CINZENTAS O ativista Ma Jun em Pequim. “Ao ver a natureza no Pantanal, fiquei maravilhado e pensei em como nossos rios deveriam ser na China” (Foto: Liu Jin/AFP)

A indústria chinesa que produz celulares, câmeras, lâmpadas e tênis que consumimos deixou para trás uma hecatombe ambiental em seus quintais. Metade dos rios e lagos está contaminada, 300 milhões de pessoas não têm água potável, dois terços dos moradores das cidades estão expostos ao ar poluído, e a comida está intoxicada por metais pesados – tudo de acordo com números oficiais. O ativista Ma Jun não se intimidou com isso. Usando informações do governo, ele montou a campanha Green Choice Alliance (Aliança para Escolha Verde). Em seu site, relaciona as empresas responsáveis por 65% da poluição no país. Multinacionais como Apple, Nike, Walmart e Unilever começaram a fazer acordos com a Aliança para descartar fornecedores locais na lista suja.
Com isso, Ma Jun está ajudando a limpar a China. “Agora, essas empresas estão transferindo suas atividades para outros países, como o Brasil. Não podemos deixar que elas tenham liberdade para poluir”, disse a ÉPOCA em entrevista concedida num táxi preso num congestionamento no Rio de Janeiro.
ÉPOCA – Como sua luta começou?
Ma Jun – Em 1999, lancei um livro sobre os problemas de poluição na China. Comecei a pensar nas soluções. Concluí que os problemas não eram causados por falta de tecnologia nem de dinheiro, mas de motivação. O desafio era levar informação para que as pessoas se envolvessem. Em 2008, seguindo os princípios declarados na Rio 92, o governo chinês criou uma lei que obriga as autoridades a divulgar alguns dados ambientais. Daí nasceu a ideia de fazer uma base de dados com os grandes poluidores. Fizemos mapas on-line fáceis de consultar, mostrando o estado de poluição dos principais rios. Montamos uma lista das empresas mais sujas, responsáveis por 65% da poluição do ar e da água. E decidimos usar a pressão dos consumidores.
ÉPOCA – Como isso foi feito?
Jun – Resolvemos ligar as empresas mais sujas às marcas para as quais elas produzem. Criamos a Green Choice Alliance (Aliança para Escolha Verde) para divulgar isso. Algumas multinacionais, como Nike, Walmart e Unilever, foram as primeiras a perceber a importância disso. Começaram a descartar fornecedores com ficha suja em nosso site. Hoje, temos acordo com 31 marcas globais, que produzem na China. Graças a isso, cerca de 650 fornecedores que estavam na lista suja se aproximaram da Aliança para melhorar seu desempenho e sair da relação.
ÉPOCA – O senhor se sentiu ameaçado em algum momento?
Jun – Sim. No início, quando começamos a fazer campanha sobre as empresas, a pressão foi um pouco apavorante. Mas nosso objetivo não é destruí-las, e sim torná-las melhores. Além disso, tomamos o cuidado de sempre usar dados oficiais. Isso tornou mais fácil para as empresas aceitar o que fazíamos. Várias companhias que inicialmente não estavam felizes agora colaboram conosco.

ÉPOCA – Dá para confiar nos dados oficiais?
Jun – O melhor jeito de melhorar os dados não é ignorá-los. É tentar conhecê-los e usá-los. Isso torna mais difícil para as autoridades manipular as informações. Quando o governo diz que metade de nossos rios e lagos está muito contaminada, que 300 milhões de pessoas não têm água potável, que dois terços das residências urbanas estão expostas a ar poluído e que 12 bilhões de toneladas de nossos cereais têm metais pesados perigosos, provavelmente a realidade é pior. Sei que alguns cientistas gostariam que os dados fossem mais precisos. Mas os números mostram uma situação ruim o bastante para nos motivar a agir.
ÉPOCA – Tentaram aliciar o senhor de alguma forma?
Jun – Obviamente, estamos sob pressão e até sob a tentação de desistir ou aderir. Uma solução industrial pode custar milhões de dólares. Para evitar problemas, criamos algumas defesas. O maior risco é alguém apagar os dados das empresas de nossos arquivos, para que elas fiquem com a ficha limpa. Decidimos delegar esse poder a um grupo de 41 ONGs da Aliança. Todas as decisões devem ser tomadas por consenso. Se alguém me oferece dinheiro para limpar o nome da empresa, digo que sinto muito, mas não posso fazer isso sozinho.
ÉPOCA – Poderemos continuar consumindo produtos baratos da China se as fábricas de lá adotarem altos padrões de qualidade ambiental?
Jun – Há alguns custos no controle de poluição. Por outro lado, há oportunidades em eficiência energética que não encarecem a produção.
ÉPOCA – O senhor acha que, diante da pressão ambiental, algumas empresas passarão parte da produção da China para outros países?
Jun – Isso já está acontecendo. Se os administradores dessas empresas chinesas não respeitam as pessoas em seu próprio país, como se comportariam de modo diferente na África ou na América do Sul? Algumas dessas empresas já estão percebendo que essa política não dá certo. Agora, gostaríamos de nos aproximar de ONGs em outros países, inclusive no Brasil, para evitar que as empresas chinesas exportem a produção suja. Quando a economia fica global, o cuidado ambiental também precisa ficar. Não com uma multinacional ecológica, mas uma coalizão de ONGs como a nossa. Assim garantiremos que, aonde quer que as empresas forem, não encontrarão liberdade para poluir. Uma pesquisa feita na China mostra que 57% da população diz que apoia medidas ambientais, mesmo com algum custo econômico. No Brasil, o índice foi de 83%. Isso mostra que vocês têm mais chance para fazer um bom trabalho com os consumidores.
ÉPOCA – O que podemos fazer?
Jun – O Brasil tem bons exemplos de soluções limpas para outros países do Hemisfério Sul. Estou ansioso para aprender. Por enquanto, fui apenas ao Pantanal de Mato Grosso, onde fui atacado pelos mosquitos (ele mostra o braço vermelho de sol e marcado por picadas). Fiquei maravilhado ao ver tanta natureza. É como um jardim do éden! Fez com que pensasse em como nossos rios deveriam ser na China. Depois de tanto tempo trabalhando em áreas desfiguradas pela poluição industrial, tinha esquecido o que era uma área natural de verdade. Voando de São Paulo para Cuiabá, vi bastante terra desmatada, aberta para fazendas de gado ou campos de soja. Aí entendi o desafio que os brasileiros enfrentam para conciliar preservação e produção. Espero que os consumidores brasileiros possam ajudar a cobrar uma melhor postura das empresas chinesas que vendem produtos para eles. Da mesma forma, também gostaria que os consumidores chineses se preocupassem com o meio ambiente do Brasil, já que somos os principais consumidores de alguns produtos brasileiros, como soja.
ÉPOCA – O senhor já teve vontade de desistir?
Jun – Algumas vezes sim. Atualizar nossa base de dados, com cerca de 96 mil irregularidades de empresas, às vezes é bem chato. Mas, quando uma pessoa me diz como a poluição de um grupo de indústrias prejudica sua vida, me sinto recarregado. Percebo de novo a importância da minha missão. Também adoro correr, mas em muitos dias não consigo – o ar está sujo demais. Tenho um filho. Nos dias de ar mais limpo, o vejo jogando bola com os amigos. Meu coração aperta. Penso que temos obrigação de garantir que a geração dele também tenha saúde. Assim como acesso a ambientes naturais e a uma diversidade de espécies. 
  •  Revista Época

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