Os dois garotos brincam na praia. Um branquinho, queimado de sol, olhos claros, quase negro de tamanho sol toda manhã. O outro, negrinho retinto de avós na senzala, de família no morro. Os dois descem à praia diariamente. O primeiro, de um nono andar, apartamento de frente, tapete no chão, lustres de cristal de muitas bocas, orgia de espelhos nas paredes. O outro, de um morro qualquer, barraco de madeira com São Jorge enfeitado de flor, um “dois-dois” de barro pintado, vaso de arruda na porta. Os amigos se encontram na hora certa, camaradagem de pé na areia igualitária. O primeiro traz bola. O segundo traz jogo. O primeiro é bem nutrido, atestado vivo de que caldo de vitamina batido em liquidificador é bom mesmo. O segundo é fino e sujo, os dentes inexplicavelmente claros e fortes, o riso irreverente, a gaforinha de areia sempre renovada nas pelejas da praia. Paulinho chama-se um, porque o avô foi Paulo e com ele começou a fortuna da casa. O outro chama-se Jorge, porque Ogum é padrinho.
Descem os dois todos os dias. Quando Paulinho vem acompanhado pelos pais, Jorginho assiste, com um grave olhar de técnico aposentado, à pelada em que a censura familiar não deixa preto se meter. Quando Paulino vem só com a empregada – e é quase sempre – nem é preciso pedir licença. Jorginho tem lugar seguro, que ele é o artilheiro-mor da vizinhança. E a pelada se prolonga. Por ele, a manhã toda, a tarde toda. Não tem escola, não tem compromisso. Amendoim torrado ele só vende mesmo à noite, ora à porta do Rian, ora do Roxi. Mas ao fim de meia hora, de uma hora, a pelada vai se desfazendo. Parentes e empregadas vêm recolher os futuros Garrinchas, os Pelés e Zagalos em formação. Paulinho fica mais tempo. E, quando está só, ele e Jorginho descansam na areia. Inseparáveis na pelada – Paulinho arama o jogo, Jorginho apanha o couro e arremata de maneira inapelável – uma funda rivalidade os separam em tudo. Nunca se entendem. Porque Paulinho é importante, Jorginho um coitado. Paulinho vai à escola à tarde, de Cadillac. Jorginho vende amendoim na boca da noite. Oito anos, Pulinho. Nove anos, Jorginho. Reconhecendo a superioridade incrível do negro, no bate-bola, reclamando a sua colaboração, garantidora de tentos, Paulinho se vinga depois. E com sua falta de diplomacia, tão própria da idade, faz valer os seus títulos, para humilhar o companheiro.
- Tua casa tem tapete no chão?
Resposta negativa de Jorge.
- A minha tem. Até no quarto de empregada.
E continua:
- Tem lustre de cristal?
Jorginho pergunta o que é. Paulinho explica. Jorginho não tem. Luz no barraco vem dos fifós. Um vidro de sal de fruta, o outro de Phymatosan.
- Teu pai tem sítio em Petrópolis?
- Não – responde sério Jorginho.
- O meu tem...Teu pai tem usina em Campos?
- Não.
- O meu tem.
- Teu pai tem iate?
- Não.
- O meu tem.
- Quantos apartamentos teu pai tem?
- Nenhum.
- O meu tem dez. Só em Copacabana. O resto é na Tijuca.
Jorginho baixa os olhos, acaricia o monte de areia que está juntando.
- Teu pai tem televisão?
Nos olhos de Jorginho passa uma nuvem de tristeza. Nem responde.
- O meu tem – informa Paulinho.
Apanha a bola molhada, procura limpá-la dos grãozinhos de areia, pergunta de novo:
- Teu pai é deputado?
Jorginho não sabe o que seja aquilo, mas diz que não, pelas dúvidas. Deve ser coisa importante.
- Tem pai tem automóvel?
Jorginho sorri tristemente, negando.
- O meu tem – diz novamente em triunfo o garoto bem-nascido – O meu tem. Um JK 61 que eu vou na escola, um 62 que ele vai para a cidade, o Oldsmobile da mamãe, a camioneta do sítio, pra gente ir pra Petrópolis.
Jorginho está completamente esmagado. Paulinho sorri orgulhoso. E agora ele nem pergunta mais, apenas informa:
- O meu pai tem 40 ternos de roupa, o teu não tem...
Jorginho sente-se o menor dos moleques do morro.
- O meu pai tem três casas de campo, o teu não tem!
Jorginho sente-se o menor dos moleques do Rio.
O meu pai tem dez cavalos de corrida, aposto que o teu não tem!
Jorginho sente-se o menor dos moleques do Brasil.
- O meu pai tem mais de cem milhões de cruzeiros, garanto que o seu não tem!
Jorginho sente-se o menor dos moleques do mundo.
- O meu pai é amigo do Governador, o teu não é, pronto!
Jorginho sente-se o menor de toso os mortais.
Mas Paulinho ainda não está satisfeito.
- O meu pai tem retrato no jornal, o tem pai não tem, taí.
É quando Jorginho pula vitorioso. Dessa vez tem resposta. Retira do bolsinho do calção rasgado um pedaço amarfanhado de jornal. Exibe-o, peito cheio, orgulho no olhar.
- Isso não! O meu também tem.
E em tom de desafio, irretorquível:
- Tu pensa que é só teu pai que é ladrão?
Descem os dois todos os dias. Quando Paulinho vem acompanhado pelos pais, Jorginho assiste, com um grave olhar de técnico aposentado, à pelada em que a censura familiar não deixa preto se meter. Quando Paulino vem só com a empregada – e é quase sempre – nem é preciso pedir licença. Jorginho tem lugar seguro, que ele é o artilheiro-mor da vizinhança. E a pelada se prolonga. Por ele, a manhã toda, a tarde toda. Não tem escola, não tem compromisso. Amendoim torrado ele só vende mesmo à noite, ora à porta do Rian, ora do Roxi. Mas ao fim de meia hora, de uma hora, a pelada vai se desfazendo. Parentes e empregadas vêm recolher os futuros Garrinchas, os Pelés e Zagalos em formação. Paulinho fica mais tempo. E, quando está só, ele e Jorginho descansam na areia. Inseparáveis na pelada – Paulinho arama o jogo, Jorginho apanha o couro e arremata de maneira inapelável – uma funda rivalidade os separam em tudo. Nunca se entendem. Porque Paulinho é importante, Jorginho um coitado. Paulinho vai à escola à tarde, de Cadillac. Jorginho vende amendoim na boca da noite. Oito anos, Pulinho. Nove anos, Jorginho. Reconhecendo a superioridade incrível do negro, no bate-bola, reclamando a sua colaboração, garantidora de tentos, Paulinho se vinga depois. E com sua falta de diplomacia, tão própria da idade, faz valer os seus títulos, para humilhar o companheiro.
- Tua casa tem tapete no chão?
Resposta negativa de Jorge.
- A minha tem. Até no quarto de empregada.
E continua:
- Tem lustre de cristal?
Jorginho pergunta o que é. Paulinho explica. Jorginho não tem. Luz no barraco vem dos fifós. Um vidro de sal de fruta, o outro de Phymatosan.
- Teu pai tem sítio em Petrópolis?
- Não – responde sério Jorginho.
- O meu tem...Teu pai tem usina em Campos?
- Não.
- O meu tem.
- Teu pai tem iate?
- Não.
- O meu tem.
- Quantos apartamentos teu pai tem?
- Nenhum.
- O meu tem dez. Só em Copacabana. O resto é na Tijuca.
Jorginho baixa os olhos, acaricia o monte de areia que está juntando.
- Teu pai tem televisão?
Nos olhos de Jorginho passa uma nuvem de tristeza. Nem responde.
- O meu tem – informa Paulinho.
Apanha a bola molhada, procura limpá-la dos grãozinhos de areia, pergunta de novo:
- Teu pai é deputado?
Jorginho não sabe o que seja aquilo, mas diz que não, pelas dúvidas. Deve ser coisa importante.
- Tem pai tem automóvel?
Jorginho sorri tristemente, negando.
- O meu tem – diz novamente em triunfo o garoto bem-nascido – O meu tem. Um JK 61 que eu vou na escola, um 62 que ele vai para a cidade, o Oldsmobile da mamãe, a camioneta do sítio, pra gente ir pra Petrópolis.
Jorginho está completamente esmagado. Paulinho sorri orgulhoso. E agora ele nem pergunta mais, apenas informa:
- O meu pai tem 40 ternos de roupa, o teu não tem...
Jorginho sente-se o menor dos moleques do morro.
- O meu pai tem três casas de campo, o teu não tem!
Jorginho sente-se o menor dos moleques do Rio.
O meu pai tem dez cavalos de corrida, aposto que o teu não tem!
Jorginho sente-se o menor dos moleques do Brasil.
- O meu pai tem mais de cem milhões de cruzeiros, garanto que o seu não tem!
Jorginho sente-se o menor dos moleques do mundo.
- O meu pai é amigo do Governador, o teu não é, pronto!
Jorginho sente-se o menor de toso os mortais.
Mas Paulinho ainda não está satisfeito.
- O meu pai tem retrato no jornal, o tem pai não tem, taí.
É quando Jorginho pula vitorioso. Dessa vez tem resposta. Retira do bolsinho do calção rasgado um pedaço amarfanhado de jornal. Exibe-o, peito cheio, orgulho no olhar.
- Isso não! O meu também tem.
E em tom de desafio, irretorquível:
- Tu pensa que é só teu pai que é ladrão?
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